segunda-feira, 9 de julho de 2012

Da Casa dos Patudos e de José Relvas

Relvas, apelido que leva à exaustão de tanto repetido. Sabemos todos porquê. Por isso, a criatividade dos portugueses ultrapassou já a indignação para cair no campo da anedota. Sem entrar directamente no assunto, proponho, em contraponto, uma outra personalidade. Semelhante no nome, mas diferente na maneira de estar na vida: José Relvas (1858-1929).

Político que atravessou a viragem para o século XX, cedo frequentou a Faculdade de Direito em Coimbra. Pouco depois havia de trocar as leis pelo Curso Superior de Letras, o qual completou em 1880, em Lisboa. O ideário republicano cativou-o e esse facto seria determinante na vida política, uma vez que lhe conferiu a honra de proclamar o novo regime em 5 de Outubro de 1910, à varanda da Câmara Municipal de Lisboa. Serviu o País, sem nunca se deixar deslumbrar pelo poder. De relacionamento fácil com os grandes e com o povo, gostava simplesmente de ser tratado como senhor José Relvas. E, de facto, era um senhor. Verdadeiro humanista que soube aplicar os seus proventos na aquisição de objectos de arte, de pintura, de escultura e até de instrumentos musicais na colecção de um rico acervo que ainda é possível admirar na Casa dos Patudos em Alpiarça. O ambiente paradisíaco da sua casa na margem esquerda do Tejo suscitava a admiração dos amigos que, todavia, não deixaram de lamentar a perda dos seus três filhos. O testamento de José José Relvas, em 1929, legando o seu património aos conterrâneos, atesta bem a generosidade de um espírito superior que soube morrer como viveu...

" ...esta casa é muito singular, pois tem um grande porte e nenhuma ostentação. Não se lhe pode dar o nome de chateau ou de manoir, ou mesmo de casa de campo. Dir‑se‑ia uma velha residência de família, transmitida por herança de pais a filhos. No entanto não tem 6 anos de construída; e não lhe dá este primeiro aspecto a conhecer não já o gosto mas o fundo nobre do carácter do homem que a construiu, e que assim pretendeu adoptar a sua noção da família ao domicílio que melhor lhe convém e que ainda é aquele que noutros tempos a abrigou e perpetuou? A casa dos Patudos, pois esse é o seu nome, nasceu ontem e tem séculos. De nobreza? Não. De solidariedade de família, de virtudes domésticas, de agasalho de hospitalidade. Por efeito do seu temperamento, da sua educação, o dono desta casa é um destino inteiramente votado ao amor a ao culto da arte a ao qual todos os outros, mesmo o que o prende à lavoura, mesmo o que o lançou na política, são destinos acessórios.
Assim, a sua casa, abriga com a sua família, o maior número de obras de arte que ainda enriqueceu o domicílio dum homem sem ostentação, e nele se presta à arte um culto tão fervoroso, que se diria não se viver ali para outra coisa. As suas salas são galerias de pintura e escultura, onde é licito passear com um catálogo nas mãos, como nas salas dos museus. Tropeça-se em objectos de arte. Aqui é um móvel, acolá uma talha, além uma faiança, mais além um medalheiro. Numa vitrina está a mais bela obra de olaria portuguesa. Noutra é fácil admirar ao lado de um autêntico Galrão, um Stradivarius autêntico, o que caracteriza a serenidade desta paixão, a que tantos se entregam por puro luxo é que ela se foi instalar longe do ruído da vida mundana e da publicidade e se sacia solitariamente. Nessa casa amam-se todas as artes mas só uma se cultiva – a música. Se ao leitor sucedesse passar já noite velha, pela beira da estrada de Almeirim não seria de estranhar que ouvisse por entre o concerto do coaxar das rãs, as harmonias vindas lá de dentro, duma sonata de Beethoven, ou de Mozart. É no que ali se passam as noites.»

João Chagas

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