segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Relatividade do Homem


Naturalmente, o tempo da História é selectivo. A escrita da História selecciona e regista uma ínfima parte do passado. Acontecimentos, personalidades e fenómenos de toda a espécie vão sendo empurrados, pouco a pouco, para o campo de "arquivo morto", onde apenas alguns interessados os procuram e estudam.

O desejo de transmitir algo aos vindouros faz parte da condição humana. Assim acontece com a herança em testamento a familiares, o registo de uma actividade ou a criação em qualquer domínio cultural. Reflexo da ideia de imortalidade que, desde as mais antigas civilizações, os documenta registam.

Pensava em tudo isto quando deparei com um poema de António Gedeão que transmite bem a relatividade da condição humana. Por aqui passa também a angústia pelo esquecimento a que está votada a memória de todo o homem, mesmo sendo um poeta como ele!


"Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal? "


António Gedeão, Poema

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