Desde segunda-feira que não me sai da cabeça uma história de guerra passada há cinquenta anos. Em Mucaba, depois de uma operação militar com a UPA, foi encontrado um menino de cerca de três anos, ferido e amedrontado ao lado do cadáver do pai. Levado para um orfanato em Luanda, distinguia-se de todos os outros pelo olhar vivo e pela singularidade de um gesto repetido. De braços levantados, gritava "viva Portugal!".
O futuro daquela criança havia de mudar com a visita do Ministro do Ultramar a Angola. Conhecendo o desejo do Dr. Almerindo Lessa em adoptar um orfão de guerra, o Professor Adriano Moreira decidiu-se pelo "menino de Mucaba" que voou para Lisboa acompanhado por uma enfermeira paraquedista. Pareceu consenual o nome a dar-lhe: João Mucaba Lessa. João para homenagear o rei restaurador ( D. João IV) e derivados da localidade de origem e da família adoptiva, os apelidos.
João cresceu rodeado de carinho e de bem-estar num ambiente familiar que sempre o poupou às memórias pesadas da guerra. Estudante de medicina, o menino seguiu as pisadas do pai adoptivo e trabalha hoje no Serviço de Sangue do Hospital de S. José em Lisboa. Tendo usufruído de um bom nível de vida, casado e pai de dois filhos, o dr. João dispõe de todas as condições para ser feliz. Tal não acontece, porque no seu espírito pairou sempre uma nuvem de tristeza inexplicável que, não raras vezes, se transformava em pesadelo nocturno. Valeu-lhe o apoio da família e, especialmente, da mulher. Nunca esquecidos, os traumas de guerra parecem começar a ser ultrapassados depois de um encontro casual com uma tia em Lisboa.
Finalmente, chegou o momento de conhecer pessoalmente os irmãos e parentes, visitar o espaço onde nasceu e viveu os primeiros anos. A reportagem da TVI acompanhou também essa visita. A emoção do homem, que ainda mantém as lembrança dos lugares da primeira infância, com os familiares é indescritível. Dir-se-á que a viagem a Angola configura a catarse de uma vida. Hoje, o dr. João é angolano por fora, mas português por educação e formação. Como ele próprio explicou: aqui está a sua família, a sua mulher e filhos, a sua irmã (também ela adoptada pelo casal Lessa), o seu trabalho. Aqui trabalha e aqui acabará os seus dias, embora sem renegar as origens angolanas...
Esta história de vida, que mais parece ficção, remete-nos para a responsabilidade da educação e dos traumas que, desde a mais tenra idade, marcam a personalidade. Afinal, isso representa uma lição a tomar por todos.
Nota - A reportagem da TVI pode ser vista na Internet. Passou no dia 20 de Junho no Jornal das 20 horas, na parte final da segunda parte. A não perder...
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