terça-feira, 27 de outubro de 2009

Acerca das declarações de Saramago


A forma como Saramago vê a Bíblia gerou um coro de vozes discordantes. À direita e à esquerda, muitas foram as críticas. Sem intenção de alimentar polémicas, anoto uma delas.
Daniel Oliveira, militante do Bloco de Esquerda e comentarista do Expresso, analisa o assunto de forma objectiva e pertinente. Desse artigo, Evangelho de um Primário, publicado no passado sábado, transcrevo um excerto.


"A religião, os seus fundamentos e os seus livros merecem tanto respeito como qualquer outra coisa na terra, nem de menos nem de mais.

Não é, por isso, a falta de respeito que me incomoda nas declarações de Saramago sobre a Bíblia ( e nem os apelos a que renuncie à nacionalidade portuguesa).Muito menos a mim, ateu de pai e mãe razoavelmente anticlerical. É o primarismo. Como reduzir um conjunto de textos tão complexo e contraditório a "absurdos" e "disparates"? Como pode um escritor resumir assim aquela que foi a fonte de inspiração de milhares de textos literários (até os dele), composições musicais ou obras de arte? Como se pode falar de um "manual de maus costumes" quando se fala de textos ( dos tão diferentes Antigo e Novo Testamento ) que contêm em si o melhor e o pior da humanidade, toda a crueldade e generosidade , toda a vingança e perdão? Como pode alguém que escreve sobre a nossa história comum descer ao mais baixo dos anacronismos históricos?

O primarismo está a transformar-se num ar do nosso tempo. É ele que que faz crescer os fundamentalismos religiosos e as leituras literais da Bíblia e do Corão. E o primarismo atrai primarismo. Cria um manto espesso de intolerância e ignorância, de estupidez e incomunicabilidade. No tempo da frase curta, da declaração bombástica, do escândalo sem sentido da história, o primarismo é mais forte do que qualquer ideia. O que é extraordinário é que seja eu, um colunista da espuma dos dias, a dizê-lo a propósito de um escritor, que tem outro tempo para respirar, que pode ir muito além do espectáculo da polémica fácil. "

1 comentário:

goiaba disse...

Estou de acordo com o texto e porque gosto muito da forma como Saramago escreve, fiquei triste com as suas afirmações realmente primárias e também com o livro "Caim". Já o li e senti a inutilidade da leitura - mesmo continuando a gostar da escrita.
Tenho pena.